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Processo Administrativo
Disciplinar & Ampla Defesa
3º Edição

 

Matéria
A Chave do Sucesso
Revista Prática Jurídica

PRESCRIÇÃO DISCIPLINAR REGIDA PELO DIREITO PENAL

José Armando da Costa

PRESCRIÇÃO DISCIPLINAR REGIDA PELO DIREITO PENAL

José Armando da Costa

Introduziu a matéria de Direito Disciplinar no curso de Políticas Públicas e Gestão Governamental na Escola Nacional de Administração Pública (Brasília); Foi Delegado e Superintendente da Polícia Federal; Corregedor da Secretaria de Estado de Segurança Pública do Ceará; autor de Teoria e Prática do Processo Administrativo disciplinar (5ª ed., Brasília Jurídica, 2005), Contorno Jurídico da Improbidade Administrativa, Controle Judicial do Ato Disciplinar, Prescrição Disciplinar, Incidência Aparente de Infrações Disciplinares, Direito Disciplinar: temas substantivos e processuais.

Sumário: 1 Tópicos introdutórios. 2 Regência penal da prescrição disciplinar. 3 Predominância da instância penal. 4 Paralelismo prescricional das instâncias penal e disciplinar. 5 Prejudicialidade penal 6 Falho critério do recebimento da denúncia. 7 Coisa julgada criminal. 8 Enquadramento múltiplo para se esquivar da prescrição. 9 Prescrição retroativa impeditiva do exame de mérito. 10 Empréstimo ao Direito Penal. 11 Considerações finais

1 TÓPICOS INTRODUTÓRIOS

Diferentemente do Direito Penal — onde, entre outros traços substanciais de distinção, a prescrição ataca tanto o crime quanto a sanção imposta —, no campo do Direito Disciplinar, somente se verifica, pelo perpassar do tempo, a extinção da infração funcional.

 

Por decorrência do fundamental princípio da segurança jurídica, não poderia o agente passivo de qualquer relação jurídica — quer seja pública ou privada — ficar indefinidamente à mercê do arbítrio do titular de um direito. Tal circunstância, caso fosse admitida pelo direito, implicaria impor ao devedor, ou ao réu, uma punição perpétua de desassossego.

 

Daí porque a regra da segurança e certeza do direito impõe limites a tais descomedimentos.

 

No setor do Direito Administrativo Disciplinar, não fosse o regramento da prescrição, poderia o servidor possivelmente faltoso ou inocente ficar — por muito mais tempo que o devido ou pela sua vida funcional inteira —, na dependência exclusiva da vontade dos seus superiores hierárquicos. Isso seria, por outro lado, muito maléfico à ordem disciplinar da repartição.

 

Essa é a razão pela qual, nos ordenamentos jurídicos dos países civilizados, a fluência do tempo gera relevantes efeitos na área do direito. O decurso de certos e previstos lapsos temporais, associado à inércia do titular de um direito, pressiona a incidência, dependendo do caso em concreto, da decadência, da prescrição, da preclusão ou da perempção. Conquanto se aconcheguem em origem comum — o perpassar do tempo — destaque-se que cada um desses institutos tem as suas características próprias. Não constituindo tal discriminação preocupação deste tema, que vai tratar, como temática nuclear, da prescrição disciplinar ordenada pelo Direito Penal.

 

Todavia, vale adicionar que tais categorias jurídicas não visam, com exclusividade, reprovar a inação dos detentores de direito, como também se preordenam a apaziguar a convivência dos cidadãos na coletividade, garantindo-lhes e assegurando-lhes a certeza das relações de direito.

 

Caso o titular de certo e determinado direito pudesse dele usufruir a qualquer tempo, vulnerada restaria à tranqüilidade e o sossego da coletividade, pois assim não haveria segurança, nem, muito menos, certeza do direito.

 

2 REGÊNCIA PENAL DA PRESCRIÇÃO DISCIPLINAR

 

O Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União (Lei 8.112/90), no seu art. 142, incisos I, II e III, preceitua que a prescrição disciplinar ocorrerá nos seguintes lapsos: a) em cinco anos — quando se trate de transgressões puníveis com demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade e destituição de cargo em comissão; b) em dois anos — quando seja caso de falta disciplinar que comine pena de suspensão; e c) e em cento e oitenta dias — nas hipóteses de advertência.

 

Já o parágrafo 2º do dispositivo legal mencionado — a exemplo do que ocorre em relação a quase todos os estatutos das outras esferas da nossa república federativa —, institui que “os prazos de prescrição previstos na lei penal aplicam-se às infrações disciplinares capituladas também como crime”.

 

Pois bem, a infração disciplinar que seja considerada também como crime, pela lei penal, prescreve em igual fluência de tempo. Até ai, tudo bem, não há nenhuma dificuldade prática em se aplicar essa regra de prescrição: se uma mesma conduta anômala, no atinente a todos os elementos componentes de sua antijuridicidade, constitui tanto delito disciplinar quanto penal, é compreensível a regra de que ambos devam prescrever em igual tempo. Por outras palavras: se a falta disciplinar prevista na lei funcional aplicável é também havida como crime na lei penal, e este prescreve em dez anos, logicamente que, por força dessa norma instituída no §2º do artigo 142 da Lei 8.112/90, a extinção da pretensão punitiva daquela ocorre no mesmo prazo deste, ou seja, em igual decênio.

 

Nada obstante, advirta-se, desde logo, que a questão não parece ser tão simples assim. Por primeiro, vale indagar: a quem compete estabelecer esse juízo de similitude? À instância disciplinar ou à penal? Predomina a penal ou a disciplinar, ou ambas são dotadas de igual força? E mais, essa equivalência é rigorosa ou de mera aproximação? O abandono de cargo, como delito disciplinar, equivale necessariamente ao tipo penal previsto no art. 323 do Código Penal?

 

Para o Direito Penal, tal ilicitude resta configurada quando o agente abandona “cargo público fora dos casos permitidos em lei” (art. 323 do CP). Já em termos de Direito disciplinar, “configura abandono de cargo a ausência intencional do servidor ao serviço por mais de trinta dias consecutivos” (art. 138 da Lei 8.112/90).

 

A simples leitura dos dispositivos legais referidos já demonstra de pronto que essas duas figuras delituais não são absolutamente semelhantes. O abandono criminal ocorre em qualquer quantidade de dias, desde que a ausência do servidor não seja permitida por lei e que o seu não comparecimento apresente potencialidade de risco ao regular funcionamento da repartição referente.

 

Fazendo alusão ao abandono criminal, tipificado no art. 323 do Código Penal, preleciona o saudoso E. Magalhães Noronha:

 

A lei tem em vista a regularidade e normalidade da função pública, que não pode existir sem a continuidade do exercício do funcionário. A máquina administrativa não pode estacar a toda hora com a ausência do servidor, provocando interrupção, perturbando a boa ordem e harmonia que deve reinar, a fim de que sua atividade se desenvolva de maneira normal. A lei fala em abandonar cargo público. O conceito de abandono está subordinado à probabilidade de dano ou prejuízo. O afastamento de funcionário que não crie esse perigo não será abandono. Tal acontece com cargos que têm substitutos que os assumem, na ausência do titular, ex vi legis. Presente o substituto, ainda que aquele se tenha afastado indevidamente, não há dano para a administração pública, em face da substituição imediata. (Direito penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. v. 4. p. 274-275)

 

Não é outro o modo de ver de Damásio E. de Jesus (Direito penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. v. 4. p. 160-161), Cezar Roberto Bitencourt (Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 4. p. 433), Julio Fabrini Mirabete (Manual de direito penal. 9. ed. São Paulo: Atlas, 1995. v. 3. p. 331), Fernando Capez (Curso de direito penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 464), entre outros.

 

Referindo-se à idêntica figura do Direito Penal Italiano, preleciona Manzini: “O objeto jurídico do abandono de cargo é o interesse concernente ao funcionamento normal da administração pública, em sentido amplo, atendendo, particularmente, à conveniência de assegurar, mediante a sanção penal, a continuidade, a regularidade e a eficiência das funções públicas, dos serviços públicos e dos de necessidade pública, contra o abandono individual de um ofício ou de um serviço ou contra a obstrução individual, nos mencionados ofícios ou serviços, independentemente do dano que do fato ilícito tenha ou não resultado. Contudo, é preciso que haja decorrido tempo suficiente ou se tenha dado por modo idôneo a concretizar a violação do interesse tutelado, ainda que não se tenha verificado dano” (MANZINI, Vincenzo. Trattato di diritto penale italiano, 1946, p. 337).

 

Confirmando a tese de que o abandono criminal (caput do art. 323 do CP) somente se configura quando haja, no mínimo, probabilidade de dano ou prejuízo, confiram-se estes fragmentos jurisprudenciais:

 

O crime de abandono de função pressupõe, necessariamente, a conseqüente acefalia do cargo, isto é, a inexistência ou ocasional ausência do substituto legal do desertor. Estando presente funcionário a quem caiba a substituição do ausente, não há, sequer, probabilidade de dano, que constitui condição mínima para a existência do evento criminoso. (TACRIM-SP – AC – Rel. Dínio Garcia – RT 451/423)

 

O legislador incluiu o abandono de cargo entre os ilícitos penais, visando a não deixar paralisada a máquina administrativa. Tal não acontece quando está presente o funcionário a quem incumbe assumir o cargo na ausência do ocupante; nesse caso, não havendo probabilidade de dano, que é a condição mínima para a existência de um evento criminoso, não se configura o delito do art. 323 do CP. (TACRIM – AC – Rel. Cunha Bueno – RT 526/331)1

 

Em termos disciplinares, tal infração — presumindo de modo absoluto (presunção jure et de jure) essa potencialidade de risco —, somente se caracteriza quando a falta do agente público ao serviço se estenda por mais de trinta dias consecutivos, e desde que seja essa a sua intenção (rectius: quando haja ausência de causa justificante).

 

Se o funcionário ausenta-se de modo injustificado por mais de trinta dias, caracterizado restará o abandono disciplinar, mas não necessariamente o abandono criminal, pois que este, diferentemente daquele que presume o risco funcional, exige que se prove as circunstâncias definidoras desse risco.

 

Havendo demonstração de risco potencial, a falta ao serviço por um só dia configura o abandono criminal, não ocorrendo o mesmo em relação ao delito disciplinar correspectivo, pois que nessa instância o fato signo presuntivo do prejuízo funcional somente ocorre quando haja mais de trinta faltas ininterruptas.

 

Tanto é verdade que, para a configuração penal do abandono, se exige apenas a potencialidade de risco. A efetivação do prejuízo funciona não como condição elementar do crime e sim como circunstância que o qualifica (cominando pena mais severa), consoante o disposto no §1º do art. 323 do CP (“Se do fato resulta prejuízo público”). Quando esse desserviço se verifica em repartição localizada em faixa de fronteira, a potencialidade de risco, adquirindo maior relevo, torna a conduta do agente ainda mais grave, configurando, portanto, abandono qualificado, nos termos do §2º do mencionado caput (“Se o fato ocorre em lugar compreendido na faixa de fronteira”).

 

Quando se penetra nessa quadra movediça, a compreensão segura e exata do dispositivo legal mencionado (§2º do art. 142 da Lei nº 8.112/90) passa a exigir maiores esforços exegéticos, cujo resultado, sem dúvida, não se comporta nos lindes elásticos geralmente encontrados por arbitrárias comissões de processo disciplinar. Estas, com o indevido adjutório do dispositivo legal em comento, lançam mão desse instituto como quem dispõe de um nariz de cera: ora colocam para um lado, ora, para outro. Se a infração disciplinar, como crime, requisita maior tempo para a prescrição, forçam a interpretação de similitude somente para esticar artificialmente o prazo da prescrição disciplinar, maleficiando, de efeito, o servidor imputado.

 

Agem, assim e freqüentemente, no intuito de elidir as cominações legais que são acenadas contra os desidiosos, de que é exemplo o disposto no §2º do artigo 169 da lei acima referida (“A autoridade julgadora que der causa à prescrição de que trata o art. 142, §2º, será responsabilizada na forma do Capítulo IV do Título IV”).

 

3 PREDOMINÂNCIA DA INSTÂNCIA PENAL

 

De antemão, assinale-se que as instâncias penal, civil e disciplinar são autônomas e independentes, não podendo, em princípio, a decisão de uma influir na outra. As exceções previstas expressamente não admitem, por diversas razões, que as decisões disciplinares repercutam no campo penal. Já a recíproca, porém, não é verdadeira, uma vez que as decisões penais — quando neguem categoricamente o fato ou sua autoria — fazem coisa julgada nas outras instâncias.

 

Esse excepcional predomínio da sentença penal sobre os processos civis e disciplinares decorre do fato de o princípio de ordem pública ser mais denso na seara penal. Ademais, destaque-se que, em relação às demais, a instância penal, a par de produzir conseqüências superlativamente mais drásticas, é bem mais rigorosa em matéria de prova.

 

Tocante a esse aspecto do maior rigor probatório, vale reproduzir aqui o seguinte trecho jurisprudencial:

 

A atividade jurisdicional, a nível penal, não define a atividade a nível administrativo relativamente ao mesmo fato, porque a exigência de prova da ilicitude penal é mais rigorosa do que para a ilicitude administrativa. É mais rigorosa porque, apesar de inexistir diferenças entre as ilicitudes (penal, civil e administrativo), existe uma escala de gravidade da mesma, ensejando com isso respectivas sanções mais ou menos graves. O fato da prova dos autos não ser admissível, em tese, para uma reprimenda penal, pode ser mais do que suficiente para uma conseqüência punitiva administrativa. (TRF – 2ª Região, Agravo de instrumento nº 91220/RJ, 2ª Turma, Rel. Des. Federal Paulo Espírito Santo, DOU 22.12.2004)

 

Contudo, há quem fundamente essa supremacia da decisão penal no caráter lógico ou sistemático da ordem jurídica, não permitindo que decisões desencontradas, e até contraditórias, desgastem, desprestigiem e desacreditem as autoridades constituídas. Sem desmerecer tais asserções, ressalte-se que elas são insuficientes para, de per si, justificar a supremacia que as leis conferem às decisões de caráter penal (sentido estrito). Não fosse assim, tais argumentos serviriam, igualmente, para conceder tal supremacia em favor de qualquer uma das instâncias, ou até mesmo conferir reciprocidade de influência entre elas, o que não ocorre.

 

Refutando com veemência esse ponto de vista, assinala o emérito e saudoso mestre Francisco Campos:

 

E como os que invocam a mencionada razão não aceitam a regra de reciprocidade de influência entre as coisas julgadas em distintas jurisdições, não há como excluir como improcedente a aludida razão, fechando-se, finalmente, o circuito lógico em torno à única razão determinante do caráter prejudicial da coisa julgada criminal, a saber, a razão do maior peso ou da maior intensidade com que se exteriorizam no Juízo Penal os motivos de ordem pública que no civil (não penal) têm caráter mais remoto ou, se quiser, de segundo plano. (in Direito administrativo. Rio de Janeiro: Freitas Bastos. v. 2. p. 367)

 

Pois bem, no que atine à exceção do princípio da independência das instâncias, o nosso jus positum, auscultando as razões mencionadas, somente confere caráter prejudicial à res judicata penal.

 

A esse respeito preceitua o Código de Processo Penal:

 

Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito. (art. 65)

 

E mais:

 

Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato. (art. 66)

 

Fazendo coro com as disposições processuais acima transcritas, assinala o nosso Código Civil que “a responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal”.2

 

Por sua vez, o Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União (Lei nº 8.112/90), fechando o mais coerente circuito de entrosamento dessa matéria, preceitua: “A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria” (art. 126).

 

Num arremate final, conclua-se que somente a instância penal, nas circunstâncias excepcionais aludidas, pode encontrar incidental ressonância nas áreas civil e disciplinar. Não sendo jamais possível o reverso.

 

4 PARALELISMO DAS INSTÂNCIAS PENAL E DISCIPLINAR

 

Todas as transgressões disciplinares previstas no Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União (artigos 116, 117 e 132 da Lei nº 8.112/90), prescrevem — segundo o seu art. 142, incisos I, II e III —, em cinco anos (“quanto às infrações puníveis com demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade e destituição de função”); em dois anos (“quanto à suspensão”); e em cento e oitenta dias (“quanto à advertência”).

 

Donde se deduz que o paralelismo prescricional das infrações penal e disciplinar somente ocorre em relação ao universo de crimes previstos no art. 132, inciso I, da Lei nº 8.112/90, que compreende todas as infrações penais perpetradas por funcionário público contra a administração em geral. Tais delitos encontram-se tipificados nos artigos 312 a 337 do Código Penal.

 

A prática de qualquer uma dessas infrações penais, salvante a incidência do princípio constitucional da proporcionalidade, 3 pode, nos termos do art. 132, inciso I, ensejar ao seu infrator a pena de demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade e destituição de cargo em comissão.

 

Inexistindo justo título administrativo autônomo para punir, de que são exemplo os casos previstos no inciso I do art. 132 acima mencionado (hipóteses de crimes contra a administração pública), obviamente que é de bom aviso a política jurídica que, cortando ensanchas a desencontros que somente servem para desgastar e desacreditar os órgãos públicos, estabeleça prazo uniforme para a prescrição nesses dois campos punitivos. Daí a proclamação legal do §2º do art. 142 da Lei 8.112/90: “os prazos de prescrição previstos na lei penal aplicam-se às infrações disciplinares capituladas também como crime”.

 

Se a pena de demissão imposta ao servidor se escora no art. 132, inciso I, combinado com o art. 138 (definição legal do abandono cargo), a decisão da instância disciplinar, além de não depender da instância penal, se sujeita à prescrição qüinqüenal instituída no §2º do art. 142, todos da Lei 8.112/90 (Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União). Todavia, se a demissão for calcada nos termos do inciso I do art. 132 do Estatuto do Servidor, combinado com o art. 323 do Código Penal, o prazo prescricional de regência é o previsto na lei penal, que varia de acordo com a tipificação do abandono criminal.

 

Tratando-se de abandono criminal simples (previsto no caput do art. 323), o prazo prescricional nas duas instâncias se concretiza com o decurso de dois anos; enquadrando-se no parágrafo primeiro, em 4 anos, e, no parágrafo segundo, em 8 anos.

 

Se o motivo de punir encontra exclusivo lastro na própria lei disciplinar não há razão para que se aplique a norma do paralelismo prescricional (“os prazos de prescrição previstos na lei penal aplicam-se às infrações disciplinares capituladas também como crime”). Vale dizer, se o abandono do cargo atende a configuração prevista no art. 138 do estatuto federal,4 não há por que fazer a regência penal. Existindo título disciplinar autônomo, não há razão para que a administração se subordine à instância criminal. Mesmo porque essa vinculação requesta que o decisório penal transite em julgado.

 

Se não fosse assim, estabelecido restaria o império da incerteza e da incoerência, uma vez que, em tese, o abandono disciplinar poderia ser arbitrariamente deslocado para o inciso I do art. 132 do estatuto federal (combinado com o caput do art. 323 do CP), diminuindo, em favor do servidor faltoso, o prazo prescricional de cinco anos para dois anos apenas.

 

5. PREJUDICIALIDADE PENAL

 

Como já elucidado em linhas atrás, as instâncias são, em princípio, autônomas e independentes, não devendo uma subordinar a outra. Salvante as exceções previstas nos artigos 65 e 66 do Código Processo Penal, 935 do Código Civil e 126 do Estatuto Federal, onde é lançada a regra de que o juízo criminal faz coisa julgada nas outras instâncias, quando as questões relacionadas com o fato e sua autoria resultem de menção categoricamente assentada na sentença penal.

 

Donde se conclui que a sentença penal que negue a existência do fato ou que, mesmo reconhecendo a existência deste, negue incisivamente que o servidor imputado seja o seu autor, repercutirá necessariamente para absolvê-lo da condenação disciplinar, caso já tenha sido punido.

 

Tais reflexos não subordinam, em princípio, a instância disciplinar, que poderá desenvolver-se independentemente da penal, embora fique, posteriormente e nesses casos referidos acima, sujeita a essas vicissitudes reflexivas.

 

O mesmo não se poderá dizer em relação às hipóteses do art. 132, inciso I, da Lei nº 8.112/90 (“crime contra a administração pública”), posto que — constituindo o cometimento de tais crimes a única e exclusiva razão da pena de demissão —, não deverá o servidor público ser punido sem o advento da sentença penal passada em julgado.

 

Pois bem, inexistindo outro motivo fático, ou resíduo disciplinar, suficiente e idôneo para sustentar a pena disciplinar capital, deverá necessariamente ser aguardado o desfecho da instância penal para a imposição de tal reprimenda.

 

A esse respeito, já havia pacificado o velho e extinto DASP que não poderia “haver demissão com base no item I do art. 207 do (então) Estatuto dos Funcionários, se não a precede condenação criminal” (Formulação nº 128).

 

Como bem demonstram os excertos jurisprudenciais transcritos abaixo, não é outro o modo de ver das nossas mais elevadas Cortes:

 

Estando o decreto de demissão alicerçado em tipo penal, imprescindível é que haja provimento condenatório trânsito em julgado. Se de um lado é certo que a jurisprudência sedimentada no Supremo Tribunal Federal indica o caráter autônomo da responsabilidade administrativa, a não depender dos procedimentos cível e penal pertinentes, de outro não menos correto é que, alicerçada a demissão na prática de crime contra a administração pública, este há que estar revelado em pronunciamento do judiciário coberto pelo manto de coisa julgada. (STF – Tribunal Pleno, MS nº 21.310-8 – DJ 11.03.94 – Rel. Min. Marco Aurélio)

 

A autonomia das instâncias penal e administrativa é firmemente reconhecida por esta Corte, ressalvando-se as situações em que ocorre a repercussão dessa naquela, ou seja, quando na instância penal se conclua pela inexistência material do fato ou pela negativa de sua autoria e, ainda, quando o fundamento lançado na instância administrativa refira-se à prática de crime contra a administração pública. (STF – MS nº 22.076, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 16.10.95)

 

Constitucional – Administrativo – Mandado de Segurança – Servidor público – Policial rodoviário federal – Ajuda de custo em virtude de cessão – Demissão – Capitulação dos fatos como crime – Necessidade da precedência do trânsito em julgado de sentença penal condenatória – Afronta ao princípio da ampla defesa. (STJ - Terceira Seção - Ms nº 6478/DF, Rel. Min. Jorge Scartezzini, DJ 25.09.2000, p. 110)

 

Servidor público-militar. Ilícito penal. Punição administrativa. Policial que é excluído da corporação, por fato tido como delituoso, sem o julgamento da Justiça Criminal. Inviabilidade. Súmula nº 18 do STF. Segurança concedida. Sendo imputado ao servidor um ilícito penal, só é admissível a punição administrativa pela falta residual, depois do julgamento pela Justiça Criminal. (Ac. da 4ª Turma do TJPR – AC nº 15.658-9, DJPR 19.08.91, p. 11)

 

Infere-se, por fim, que somente com a superveniência da sentença penal condenatória, com trânsito em julgado, reconhecendo haver o servidor público praticado crime contra a administração, é que ele poderá ser demitido nos termos do inciso I do art. 132 da Lei nº 8.112/90.

 

6 FALHO CRITÉRIO DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA

 

A incidência do disposto no §2º do art. 142 do estatuto federal (“os prazos de prescrição previstos na lei penal aplicam-se às infrações disciplinares capituladas também como crime”) somente encontra regência quando haja cognição penal. E esta somente resta satisfeita com o advento da decisão condenatória não mais sujeita a recurso.

 

É curial que somente o Poder Judiciário, por meio da justiça criminal, tem legitimidade constitucional para proclamar, com definitividade, a existência de um crime. Somente depois desse reconhecimento judicial é que poderá a infração penal servir de justo título para produzir os recepcionados efeitos nas demais instâncias.

 

Para que resulte legitimada a regência da legislação penal para o efeito do estabelecimento do prazo da prescrição disciplinar, nos termos do §2º do art. 142 da Lei nº 8.112/90, não basta que haja regular apuração criminal em andamento. E sim requer a existência de provimento criminal trânsito em julgado.

 

Equivocadamente, alguns órgãos judicantes, para admitirem essas excepcionais projeções da instância criminal, se apegam ao simples despacho judicial de recebimento da denúncia do Ministério Público. Juízo esse que, quando muito, revela apenas plausibilidade condenatória (fumus boni juris), e nunca a certeza legal sobre a prática do crime.

 

Com tal erronia, já tem decidido o egrégio Superior Tribunal de Justiça, conforme fragmento jurisprudencial transcrito abaixo:

 

A Lei 6174/70 — Estatuto dos Funcionários Públicos do Estado do Paraná — prevê em seu art. 301, parágrafo único, que a falta administrativa também prevista na lei penal como crime prescreve juntamente com este.

 

Na presente hipótese, constituindo a falta praticada pelo servidor o delito de peculato tipificado no art. 312 do Código Penal, bem como tendo sido o servidor denunciado e estando a ação penal em regular trâmite, aplica-se na instância administrativa o prazo prescricional previsto na instância penal — dezesseis anos, nos moldes do art. 109, inciso II, do Código Penal. (STJ, Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 18093/PR, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU 13.12.2004)

 

O recebimento da denúncia — ajuntado ao presumido desenvolvimento regular do processo — não estabelece uma base processual de conhecimento suficiente para ensejar a projeção do efeito instituído na disposição estatutária referida.

 

Até que a decisão penal condenatória não adquira o feitio de coisa julgada (res judicata), pode haver a mudança de enquadramento penal, ou até mesmo absolvição que negue categoricamente a existência do fato ou da sua autoria. Por conseguinte, o simples recebimento da exordial do Ministério Público não é o bastante para que, nesses casos, se estenda à instância disciplinar a mencionada regência prescricional do Direito Penal.

 

Ressalte-se que nessa questão não pode prosperar o argumento de que o acusado se defende do fato que lhe imputado, e não do enquadramento que é dado a esse mesmo fato. Isso porque, mesmo que a imputação seja de fato existente, a variação de sua subsunção à norma é por demais relevante, pois, dependendo da qualificação jurídica da fatispécie penal considerada, o prazo prescricional poderá ser maior (maligno) ou menor (benigno).

 

As próprias modalidades de abandono criminal de cargo comportam três distintos lapsos de regência prescricional na área disciplinar, conforme seja o fato encaixado no caput do art. 323 do Código Penal (um ano) ou nos tipos qualificados dos seus parágrafos 1º (quatro anos) e 2º (oito anos).

 

Bem elucidativa a esse respeito é a questão que foi submetida ao Supremo Tribunal Federal por meio da Ação Penal 375-2/SE. O caso fora inicialmente levado às barras do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe, o qual, por unanimidade, recebeu a denúncia inaugural do processo. Com a eleição do acusado para o cargo de Deputado Federal, foi a pendência deslocada para a nossa Suprema Corte, em cumprimento ao disposto na alínea “b”, inciso I do art. 102 da Constituição Federal.

 

A denúncia — que foi recebida por unanimidade por aquela Corte estadual — assestava ao réu a prática do crime de peculato (art. 312 do Código Penal). Consoante as provas produzidas ainda nessa instância estadual, restou comprovado que o réu não praticara tal delito, e sim teria, quando muito, malferido o art. 315 do CP (emprego irregular de verbas).

 

No Excelso Pretório, pela manifestação da Procuradoria Geral da República, ficaram assentadas as seguintes assertivas, depois de haver examinado outras provas dos autos:

 

De fato, conforme salientado pelo Tribunal de Contas de Sergipe, fls. 51, o denunciado não elaborou o devido termo aditivo contratual para que fosse possível realizar a referida restauração da Rua V. No entanto constata-se que o desvio de verbas públicas se verificou em favor do próprio ente público. O denunciado efetuou destinação diversa da prevista no contrato com a sociedade JAGUARACY CONSTRUÇÕES E SANEAMENTO E LTDA, mas esta foi revertida a favor da própria municipalidade.

 

Tal conduta não se amolda aos preceitos do art. 312 (peculato) do CP, nem tão pouco aos do inciso I do art. 12 do Decreto-Lei nº 201/67, que, pelo princípio da especialidade, traz a definição jurídica mais adequada ao caso. O comportamento do réu poderia caracterizar o crime descrito no art. 315 do CP — Emprego irregular de verbas públicas — se a destinação fosse prevista em lei; o que não é o caso.

 

Por fim, o Pleno da Suprema Corte decidiu, por unanimidade, pela improcedência da ação penal contra o réu, absolvendo-o, nos termos do art. 386, inciso III, do Código de Processo Penal. 5

 

Esse caso ilustra muito bem que é por demais equivocado o ponto de vista dos que defendem a tese de que — para a regência da prescrição penal na área disciplinar, nos moldes do §2º do art. 142 do Estatuto Federal ou dos estaduais similares (“os prazos de prescrição previstos na lei penal aplicam-se às infrações disciplinares capituladas também como crime”) — basta que a denúncia haja sido recebida pelo Judiciário.

 

O prazo prescricional do peculato previsto na cabeça do art. 312 do Código Penal é de dezesseis anos; ao passo que a prescrição do delito consistente no emprego irregular de verbas ocorre com a fluência de apenas dois anos.

 

Tal disparate (doze ou dois anos) revela muito bem a grosseira erronia dos que se satisfazem, para tal mister, com a simples recepção judicial da denúncia.

 

Como se vê, não pode a sorte do servidor público ficar a mercê de tão inseguras, incertas e absurdas interpretações.

 

7 COISA JULGADA CRIMINAL

 

A menos que se pretenda fazer do direito uma caixa de surpresa — negando-lhe a sua precípua e crucial função de certeza e garantia — poderá a regência penal da prescrição disciplinar contentar-se tão somente com a recepção judicial da denúncia ministerial, nos termos do §2º do art. 142 do Estatuto Federal ou dos estaduais similares.

 

Mesmo porque, como bem esclarecido no item anterior, o acolhimento da acusação inicial, encerrando apenas um juízo de plausibilidade condenatória, funciona como mero fiat processual, cuja desenvoltura poderá tomar rumo tanto positivo quanto negativo, bem como apresentar no final conclusão condenatória que contemple prazo de prescrição bem menor do que o presumido na acusação principiante do processo penal.

 

Tratando-se, pois, de realidade processualmente movediça, a acusação criminal postulatória não se prestará, mesmo que recebida pelo mais expressivo órgão judicante da república, para servir de esteio à fixação do prazo da prescrição disciplinar ora em comento.

 

Daí porque se deplora, sob todos os ângulos do direito, que modo de pensar tão precipitado e desconchavado — dando indevida projeção a uma peça processual que tem apenas o condão jurídico-processual de iniciar a persecutio criminis em juízo — possa predominar no Colendo Superior Tribunal de Justiça, como bem revela a ementa jurisprudencial abaixo transcrita:

 

Consoante entendimento deste Superior Tribunal de Justiça, havendo regular apuração criminal, deve ser aplicada a legislação penal para o cômputo da prescrição no processo administrativo. Precedentes.

 

A Lei 6.174/70 — Estatuto dos Funcionários Públicos do Estado do Paraná — prevê em seu art. 301, parágrafo único, que a falta administrativa também prevista na lei penal como crime prescreve juntamente com este.

 

Na presente hipótese, constituindo a falta praticada pelo servidor o delito de peculato tipificado no art. 312 do Código Penal, bem como tendo sido o servidor denunciado e estando a ação penal em regular trâmite, aplica-se na instância administrativa o prazo prescricional previsto na instância penal — dezesseis anos, nos moldes do art. 109, II, do Código Penal. (STJ, Recurso ordinário em mandado de segurança nº 18093/PR, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJU 13.12.2004)

 

Ademais, não é possível deduzir, no vazio, que o processo em que o servidor público foi denunciado encontre-se tramitando regularmente, uma vez que a via heróica mandamental não conta com dilações probatórias que permitam tais inferências. Isso é o que insinua equivocadamente o excerto jurisprudencial mencionado (“bem como tendo sido o servidor denunciado e estando a ação penal em regular trâmite”).

 

Erronias que tais despontam de repente e de um só jato, não exigindo maiores esforços exegéticos de complementação. Pois não é legítimo que se tome como definitiva uma realidade (denúncia recebida) que se apresenta no cenário jurídico do processo penal como possível ou provável, abrindo apenas espaço para que, no processo instaurado, se busque a verdade legal (res judicata).

 

Esse equivocado julgamento do Superior Tribunal de Justiça — sobre ser fortemente salpicado por injustiça — não se concilia com o princípio constitucional da presunção de inocência6 nem, muito menos, com a cláusula do devido processo legal (due process of law).

 

Havendo o servidor público cometido infração que possa, ao mesmo tempo e de modo autônomo, enquadrar-se como disciplinar e penal, poderá independentemente do juízo penal ser punido com base tão só no tipo disciplinar, devendo a prescrição, nesse caso, se reger pelas normas disciplinares referentes. Porém, se o justo título disciplinar tem como base exclusiva a prática de crime — nos termos do inciso I do art. 312 do Código Penal (Crimes contra a administração) —, deve a instância disciplinar aguardar o trânsito em julgado do decisório condenatório penal correspondente. Nesta hipótese, sim, a prescrição disciplinar se deve reger pela criminal, nos termos do §2º do art. 142 do Estatuto Federal.

 

Isso ocorre com fundamento na simples razão de que somente à Justiça Criminal — conforme o dogma constitucional da separação de poderes — compete jurisdizer, por sentença formal, quem praticou, ou não, crime.

 

Não existe no direito pátrio nem no alienígena nenhuma disposição que, tomando por esteio a prática de crime, prescinda da sentença penal respectiva passada em julgado. Principalmente quando tal diagnóstico jurídico-penal, em sua exata e lídima compreensão, deva repercutir em outras instâncias.

 

Desacertos jurisprudências que tais, apegando-se apenas no tópico da viabilidade de condenação criminal, não estão muito longe de consagrar o entendimento de que deva o juízo penal antecipadamente produzir efeitos noutras áreas do direito, de que é exemplo o consectário capitulado no art. 935 do Código Civil. 7

 

 

8 ENQUADRAMENTO MÚLTIPLO PARA SE ESQUIVAR DA PRESCRIÇÃO

 

Por vezes, a administração pública, buscando justificar a sua desídia na elaboração e julgamento de processos disciplinares (demora injustificável por mais de cinco anos), lança mão da incorreta e antijurídica técnica do enquadramento disciplinar por exaustão, fazendo, por meio de sofismas e astúcias, com que a conduta do servidor seja artificialmente subsumida em vários tipos disciplinares. A utilização dessa artimanha não muito ortodoxa faz lembrar as longas redes de tresmalho ou de arrastão8 que são utilizadas por pescadores na cobiçada captura do maior volume de peixes possível.

 

Tais ardis — poucas vezes captados pelo Judiciário, infelizmente — tem por escopo subtrair do servidor imputado qualquer chance de defesa e, por outro lado, justificar a negligência e o desleixo dos administradores responsáveis.

 

Os desleixos referidos ingressaram já há bastante tempo no universo da notoriedade, não sendo palatável que alguém os desconheça. Tanto isso é verdade que o legislador pátrio — embora mais preocupado com questões políticas — já entendeu essa realidade, instituindo cominação legal a esses relapsos administradores, nos seguintes termos:

 

A autoridade julgadora que der causa à prescrição de que trata o art. 142, §2º, será responsabilizada na forma do Capítulo IV do Título IV. (Lei 8.112/90, art. 169, §2º).

 

O legislador, ao que denota o dispositivo legal referido, parece haver dado um basta a tais desídias oficializadas, restando, por fim, ao órgão judicante não servir como tábua de salvação àqueles que renitem no erro.

 

Conforme o grau de desídia revelado pelo servidor responsável pela prescrição, poderá o caso, em estatutos como o do Estado de São Paulo, configurar até mesmo o ilícito disciplinar da ineficiência no serviço, punível com demissão, segundo o art. 256, inciso III, da Lei Estadual 10.261/1968.

Daí por que certas administrações públicas — numa sub-reptícia demonstração de ignorância aos princípios jurídicos da incidência das normas disciplinares (enquadramento disciplinar), notadamente as regras da especialidade, da subsidiariedade e da consunção —, se louvam em falácias para, de um só jato, enquadrar a conduta do desditoso funcionário em várias disposições disciplinares, tornando tormentosa qualquer ação em seu favor.

 

Em ligeira digressão, vale recordar aqui o instituto da interação concursal de tipos disciplinares (o equivalente, na área criminal, ao conflito aparente de normas penais), em que certo fato anômalo — parecendo incidir sob várias normas disciplinares —, enquadra-se apenas numa delas. Isso em virtude de que os tipos aparentemente concorrentes apresentam entre si certa relação de dependência ou precedência, o que faz com que apenas um deles seja aplicável, ficando os remanescentes excluídos ou absorvidos.

 

Vale denunciar mais uma vez que, não raro, os enquadramentos de tresmalho ou de arrastão constituem evasivas para escamotear a crônica negligência de quem, voluntariamente, permitiu que a tramitação de certo processo se arrastasse por longo tempo. Não saneando, assim, as possíveis mazelas provocadas à administração pública, e, ao mesmo tempo, deixando inseguro o servidor imputado. Este, ainda que seja inocente, passa a viver sob a espada de Dâmocles (trabalhando com desassossego, em perigo iminente).

 

Daí porque, nesse tocante, são impostos limites de tempo à administração pública, como já assinalava, com muita proficiência, o pranteado mestre J. Guimarães Menegale:

 

Convencionou-se a fixação de contérminos à tolerância ou à incerteza da autoridade, a quem não será lícito prolongar indefinidamente a expectativa do inculpado, ao mesmo tempo em que se descura o interesse da disciplina, sem desagravá-la com a presteza exigida pelas necessidades da ordem administrativa. Em matéria de repressão disciplinar, com efeito, tolerância ou incerteza exageradas geram relaxamento da autoridade. A solução, portanto, é delimitar, no tempo, a eficácia potencial da penalidade, conter a força da punição e descarregá-la em momento determinado, no calor da infração, com a plenitude dos seus efeitos psicológicos, ou extingui-la, para relegar ao esquecimento um fato, cuja desagradável repercussão normalmente já terá cessado. (O Estatuto dos Funcionários. Rio de Janeiro: Forense, 1962. v. II. p. 623-624)

 

Destaque-se, ainda, que o regime prescricional do §2º do art. 142 do estatuto federal (“os prazos de prescrição previstos na lei penal aplicam-se às infrações disciplinares capituladas também como crime”), somente rege as hipóteses de demissão que, configurando uma das hipóteses criminais estabelecidas no seu art. 132, inciso I, não disponha de prazo prescricional específico e expresso. É o caso, por exemplo, do abandono de cargo, que, conforme o estatuto aludido (art. 142, inciso I) prescreve em de cinco anos, e não no lapso de dois anos, como sinalizado pelo art. 323 c.c. o art. 109, inciso VI, do CP. Se o abandono de cargo, como falta disciplinar, não estivesse previsto como causa autônoma e própria de demissão, aí sim, seria o fato (caso chegasse a configurar o delito penal do caput do art. 323) prescritível em dois anos, e não em cinco. Na hipótese de abandono de cargo que implique prejuízo público, ou se o fato ocorrer em faixa de fronteira, os prazos prescricionais respectivos seriam de quatro ou oito anos, nos termos dos parágrafos 1º e 2º do art. 323 combinado com os incisos IV e V do art. 109, todos do CP.

 

Aludindo-se ao parágrafo único do art. 213 da Lei 1.711/52 9 (anterior estatuto do servidor federal), que tinha simílima redação do §2º do art. 132 do atual (Lei nº 8.112/90), Eduardo Pinto Pessoa Sobrinho, com o prumo e a proficiência que lhe eram peculiares, chegou a ponderar:

 

Inexistindo prazo de prescrição expressamente estipulado no Estatuto dos Funcionários para a hipótese contemplada no §1º do art. 207 (crime contra a administração pública) desse diploma legal, e, constituindo, por outro lado, a infração falta prevista na lei penal como crime, segue-se que o prazo deferido a administração para diligenciar a punição do faltoso será o estatuído na legislação penal, ex vi do disposto no parágrafo único do art. 213 do mencionado Estatuto. (Manual dos Servidores do Estado. 12. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1968. v. II. p. 1109)

 

9 PRESCRIÇÃO RETROATIVA IMPEDITIVA DO EXAME DE MÉRITO

 

Mesmo quando seja cabível a regência penal da prescrição disciplinar, nos termos do §2º do art. 142 do estatuto federal (“os prazos de prescrição previstos na lei penal aplicam-se às infrações disciplinares capituladas também como crime”), não se aplica tal regra quando, havendo sido interposta apelação pelo servidor, haja o tribunal, em preliminar de ofício, reconhecido a ocorrência da prescrição retroativa e, de efeito, encerrado a questão com a extinção do processo.

 

Decisão como tal, impedindo o exame do mérito recursal, corta oportunidade a que o servidor recorrente possa, no segundo grau de jurisdição, provar as suas eventuais razões absolutórias ou demonstrar que o ilícito que praticara é bem menos grave e, por conseguinte, prescritível em prazo bem menor. Como, por exemplo, evidenciar que não houve o crime de peculato do art. 312 do CP (prescritível em dezesseis anos), e sim o emprego irregular de verbas públicas do art. 315 desse mesmo estatuto punitivo (prescritível em 2 anos), como bem ficou ilustrado no recente julgado da nossa Suprema Corte referido no item 6 deste ensaio (Ação Penal nº 375-2/SE, DJU 17.12.2004).

 

Casos alcançados pela prescrição retroativa (regida pela pena em concreto imposta na sentença do primeiro grau de jurisdição, com trânsito em julgado para o acusado), ainda que o réu proclame e pretenda provar a sua inocência na instância recursal, não são passíveis de reexame. Isso porque a prescrição penal — por ser matéria de elevado teor público (suplantando qualquer outra no processo) — fulmina, de pronto, a pretensão punitiva do Estado.

 

Assinale-se que não discrepa do ponto de vista acima esposado o acórdão unânime da Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça/SP, proferido nos autos da Apelação Criminal de nº 227.304-3/4, da Comarca da capital, além de inúmeros outros julgados de igual teor.

 

Obviamente que nesses casos de prescrição retroativa, o reflexo do prazo prescritivo pela pena cominada não servirá para reger a prescrição disciplinar. Configuraria, pois, um absurdo não permitir que o funcionário imputado questione o seu direito na instância recursal e, ao mesmo tempo, admitir que o crime que possa haver cometido produza esse secundário efeito de superdimensionar o prazo prescricional em seu desfavor. Isso, estreme de dúvidas, afrontaria o princípio constitucional do devido processo legal (due process of law), previsto no art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal de 1988.

 

Tal despautério equivaleria impor ao cavaleiro, além da queda, o coice, pois, sendo impedido de questionar a sua inocência no segundo grau, por força da prescrição, passaria, na área administrativa, a sofrer o refluxo de um efeito não reconhecido pelo direito. Estar-se-ia, desse modo, dando guarida a descomedido e inconcebível desconchavo.

 

Saliente-se que a prescrição pela pena em concreto (retroativa) — a par de elidir frontalmente a pretensão punitiva do Estado e produzir a rescisão da sentença condenatória —, impede que se projete em qualquer cidadela do direito a mais ínfima conseqüência, como muito bem esclarece Damásio E de Jesus:

 

A prescrição retroativa extingue a pretensão punitiva, rescinde a sentença condenatória e exclui seus efeitos principais e secundários. Como se trata de forma de prescrição da pretensão punitiva, o decurso do prazo, incidindo em período anterior à publicação da sentença condenatória, extingue o poder-dever de punir do Estado. De forma que no momento em que o Juiz profere a decisão não há mais jus puniendi. Assim, a aplicação da prescrição retroativa rescinde a sentença condenatória, que só tem valor em termos de fixação da quantidade da pena privativa da liberdade, não subsistindo em nenhum dos seus efeitos principais e secundários. Se o réu, dois anos após ser favorecido pela prescrição retroativa, vier a praticar outro delito, não será considerado reincidente por ausência de seu pressuposto, seja qual for a condenação anterior. (Prescrição penal. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 167-168)

 

10 EMPRÉSTIMO AO DIREITO PENAL

 

Há quem equivocadamente entenda que o Regime Jurídico dos Funcionários Públicos Civis da União (bem como os demais estatutos estaduais e municipais), ao regular o instituto da prescrição disciplinar, nesses casos de regência penal, tomou de empréstimo apenas os prazos previstos abstratamente nos tipos penais respectivos.

 

Nada obstante, destaque-se que esse modo restritivo de ver e ajuizar não se concilia com a alta carga de ordem pública contida no instituto da prescrição, o qual, por constituir matéria de direito estrito, se sujeita aos termos traçados na norma, e não contemporiza com interpretações que restrinjam direitos (benigna amplianda, odiosa restringenda).

 

Ademais, vale destacar que os conceitos, categorias ou institutos jurídicos tomados de empréstimos de outros segmentos do direito — quando não ajustados por lei às acepções próprias que lhe queira imprimir o ramo receptor — devem ser interpretados no seu originário sentido e alcance. A não ser que se pretenda transformar o nosso ordenamento jurídico numa caixinha de surpresa, em que o seu entendimento ou alcance fique ao sabor do arbítrio de quem o interpreta ou aplica.

 

A improcedência dessa ótica salta a olhos desaparelhados, pois, se fosse assim como defendem esses equivocados intérpretes, o direito — despojando-se de sua fundamental função de segurança e certeza —, transformar-se-ia num vasto banco de areia movediça.

 

Releva, ainda, acrescer que, em obediência aos princípios aludidos acima (certeza e segurança jurídicas), tais elementos de empréstimos somente podem comportar sentido próprio, específico e diferenciado em face da existência de regra expressa nesse sentido. Fora disso, é laborar no campo da dúvida, do casuísmo, da incerteza e da insegurança do direito.

 

Exemplo de tais empréstimos ocorre em relação ao nosso Direito Penal, o qual — louvando-se na categoria de funcionário público (instituto de Direito Administrativo) para regular os crimes contra a administração pública — deu a esse instituto, por meio de transfiguração legal, acepção própria, como bem ilustra o art. 327, e seu §1º, do Código Penal. 10 Ocorrendo o mesmo com a Lei 8.429/94, a qual, ao regular as hipóteses de improbidade administrativa, dar maior alcance, para o específico fim da matéria de sua regulação, ao conceito de agente público. Dando, assim, amplitude bem mais abrangedora à figura do agente ativo de tais delitos (civil, criminal e disciplinar), assim dispondo:

 

Reputa-se agente público, para os efeitos desta Lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior. (art. 2º)

 

Nesse tocante, extrai-se do magistério de Alfredo Augusto Becker esta bem mais que esclarecedora lição:

 

Mesmo no caso de haver o Direito Tributário, aparentemente, aceito e consagrado um princípio (ou conceito ou categoria ou instituto ou diretriz) da Ciência das Finanças Públicas ou de outra ciência pré-jurídica, todavia e sempre e necessariamente, houve uma deformação e transfiguração naquele princípio (ou conceito ou categoria ou instituição ou diretriz) quando entrou no mundo jurídico, passando a ter um conceito jurídico que não é e nem pode mais ser aquele conteúdo original e peculiar da Ciência das Finanças Públicas ou de outra ciência pré-jurídica.

 

Porém, quando a aceitaçã